História do Ranger 22
O Nascimento
No final da década de 70, a vela de oceano, especialmente nos EUA e Europa, vivia um impasse. O surgimento de novas tecnologias, especialmente como advento de novos materiais, como o carbono, o "kevlar" e as velas de "mylar", além de novas ferramentas de projeto baseadas em computadores, que fizeram com que o material evoluísse a tal ponto que o custo dos barcos tornava-se proibitivo e sua obsolescência media-se em meses.
As competições de "level rating", onde os barcos, todos com o mesmo rating, corriam por bico de proa, eram o principal laboratório para teste e novidades. Uma das mais populares, justamente em função do pequeno porte dos barcos e dos menores custos envolvidos, era a "Mini-ton", com barcos de 16 pés de rating IOR. A "Mini-Ton Cup" era, na época, um dos principais mostruários de jovens projetistas, a fim de expor suas idéias, levando ao extremo as limitações impostas pela fórmula IOR. Nesse ambiente fértil, projetistas hoje lendários como Bruce Farr, Ron Holland, Gary Mull e Tony Castro, propunham modelos cada vez mais revolucionários, alguns até bizarros.
Para a Mini-Ton Cup de 1975/76, disputada na costa oeste americana, Gary Mull entrou com um projeto de 22 pés e 950 kg, mastreação 7/8, usando um revolucionário perfil de caber constante, com indutores de turbulência e popa larga, com um fundo relativamente chato, capaz de planar nas condições de vento e mar esperadas na época da competição. O barco foi o terceiro colocado no evento, vencido por avarias e por um projeto totalmente não convencional de Farr, com bolina móvel e casco "canoe", muito mais assemelhado com os atuais ILC, mas bem menor, que aproveitou dos inesperados ventos fracos que ocorreram na competição.
O projeto atraiu a atenção de diversos fabricantes, principalmente pela excelente performance em ventos médios e fortes, boa estabilidade e conforto, além do inventivo layout que facilitava a produção em série. Entre esses estaleiros estava a poderosa Bangor Punta Marine, um conglomerado que reunia alguns dos principais estaleiros da Califórnia, entre eles os lendários Cal Boats, O'Day e Ranger Boats. O projeto foi adquirido de Mull e, então, chamado "Ranger 22".
A idéia da Bangor Punta era de ocupar o nicho de mercado do popular Ranger 23, que já era uma classe consolidada na baía de São Francisco, oferecendo um barco moderno, de alta performance e fácil manejo, como base para formar uma classe monotipo para competições em nível nacional, de forma a minimizar os custos para os velejadores e atrair novos consumidores, ávidos por um barco barato, ágil e capaz de levar uma família em pequenos cruzeiros. O sucesso foi tremendo. Em 1976/77 o Ranger 22 foi um dos barcos mais vendidos nos EUA, e flotilhas foram organizadas em vários estados, com destaque para Califórnia, Texas e Flórida.
Dois fatos novos, porém, fizeram com que os Rangers 22 fossem apenas um sucesso efêmero no mercado americano: Primeiramente, a crise na Bangor Punta, atingida por alguns investimentos infelizes, em modelos que obtiveram pouco sucesso de vendas, e depois, o surgimento de um novo barco, concebido sem preocupação com fórmulas de rating, que foi lançado no mercado com preço de poucas centenas de dólares superior ao Ranger 22: o então J-24.
O Início no Brasil
As dificuldades de mercado levaram a Bangor Punta à lona e, em 1978, vários dos moldes e dos direitos de fabricação foram negociados com outros estaleiros. O estaleiro Mariner Construções Náuticas, de Porto Alegre (RS), adquiriu, na época, entre outros, os moldes do O'Day 23, do Cal 9.2 e do Ranger 22, e preparou uma intensa campanha de vendas.
A estratégia para colocação do Ranger era de fazê-lo uma "maquininha" de regatas, para atender a dois grupos: o de iniciantes, que aspiravam a vela de oceano, e o dos proprietários de oceano, que buscavam um segundo barco de baixo custo para regatas curtas e com grande competitividade. Técnicos americanos foram trazidos para supervisionar a construção das primeiras unidades, bem como os moldes completos, inclusive do revolucionário perfil do mastro.
Os primeiros barcos surgiram no mercado em 1979 e o barco foi um enorme sucesso de vendas. A série inicial de barcos atingiu mais de 80 unidades, construídos sob estrito controle de qualidade, com vendas concentrando-se inicialmente na área do Rio Guaíba, no Rio Grande do Sul, no litoral paulista e na Baía de Guanabara. Imediatamente os novos proprietários começaram a organizar-se para formação de uma classe monotipo. No Rio Grande do Sul, o principal mentor da classe foi José Adolfo Paradeda, da Mariner. Em São Paulo, nomes como Tunico Ribeiro, Abílio dos Santos, Renato Frankenthal e Waldomiro Bussab participaram do processo de aglutinação dos Rangers. Em ambos os casos os Rangers competiam entre os oceanos, como acontece em vários lugares do país com outros modelos, como o Brasília, Atoll, O'Day e, muito mais recentemente, com os Beneteau 40.7.
No Rio de Janeiro, porém, a cultura dos monotipos cabinados ainda era forte e os novos barcos atraíram velejadores que desejavam formar uma classe estritamente monotipo, com a finalidade de substituir os Guanabaras e Cariocas. Entre eles, destacou-se a figura de Tacarijú Thomé de Paula, um ex-campeão de Guanabara e de Carioca, representante do Brasil nas Olimpíadas de Helsinque, na classe Star. Outros velejadores aderiram às idéias de Tacarijú, para então formarem uma nova classe de monotipo, nas águas do Rio de Janeiro, usando os Rangers 22 como base. Entre os pioneiros, além de Tacarijú, Renato Azevedo (então representante da Mariner no RJ), Homero Levy de Barros, Luiz Carlos Rudge, Heitor Braga Júnior, Paulo Viana e Hamilcar Veiga da Silva. Com o decisivo apoio do então comodoro do ICRJ, Carlos Alberto de Brito, e de dirigentes como Hélio Barrozo e Alberto Ravazzano, os Rangers foram separados da Classe Oceano e passaram a competir, já em 1980, como monotipos, a despeito das pressões da ABVO, e de vários outros segmentos da vela carioca, contrários à formação de mais uma Classe de monotipo.
Os demais clubes da Baía de Guanabara seguiram a iniciativa e, nos meses seguintes, a Classe já passou a ser reconhecida pela FEVERJ com um Campeonato Estadual próprio, em 1981.
Naturalmente, o passo seguinte seria o da formação de uma Associação Nacional e a disputa de um Campeonato Brasileiro. Para sediar o evento, foi escolhido o Iate Clube de Santos - ICS, e lá compareceram 14 barcos de vários pontos do litoral paulista, além de representantes do Rio Grande Sul, Santa Catarina e do Rio de Janeiro.
O primeiro Campeão Brasileiro de Ranger 22 foi Jorge Zariff, comandando o barco Maden, do ICS. O Vice Campeão foi Sérgio Montag, como Kiko II, e Jadir Serra foi o terceiro, com o barco Carrapicho. Outros velejadores consagrados na época, como Fernando Nabuco Abreu, Eloi Franzenn e George Nenh, também comandaram barcos da Classe Ranger neste campeonato.
A Associação Brasileira da Classe Ranger 22 foi fundada durante o evento, ainda sob forte impacto do recente falecimento de Antônio "Tunico" Ribeiro, um dos mais apaixonados velejadores da Classe, em São Paulo. O Troféu transitório oferecido ao Campeão Brasileiro, objetivo máximo dos rangeristas no país, leva o seu nome desde então. O Estatuto e o Regulamento da Associação, adotados na ocasião, foram baseadas na tradução das regras da Ranger 22 International Racing Association, nos EUA, que já organizara um campeonato norte americano em 1980. O primeiro presidente eleito foi Paulo Vianna, do ICRJ.
Os custos para manter os Rangers competitivos estavam subindo de forma preocupante, e a despeito de alguns membros importantes, a Classe optou por abolir as genoas tamanho 1 e 3 (150% e 100%), reduzindo o inventário das velas para "Grande", genoa 2 (125%) e spinnaker. Essa opção foi decisiva para o futuro da Classe, pois barateou substancialmente a manutenção dos barcos, permitindo sua sobrevida nos anos de crise econômica que estavam por acontecer.
Embora a decisão tenha afastado, num primeiro momento, os paulistas, o Campeonato Brasileiro de 1982, disputado no ICRJ, contou com a participação de 12 barcos. O vencedor foi José Eduardo Assumpção, comandando o Catraio, após um sensacional duelo com o Kukunká, de Paulo Vianna. O terceiro lugar coube a Fernando Cruz, no Set Point.
Apesar da deterioração das relações com os paulistas, que continuaram a disputar regatas muito bem organizadas, juntamente com os oceanos (mas usando as genoas 1 - 150%), a Classe prosseguiu crescendo, principalmente no Rio de Janeiro. As regatas reuniam, por vezes, 18 a 20 barcos e para o Campeonato Brasileiro de 1983, disputado na raia da Ilha de Palmas, sub-sede do ICRJ, no fundo da Baía de Guanabara, compareceram 17 tripulações, inclusive uma representando Brasília (DF), que já contava com um pequeno núcleo da classe.
Luiz Roberto Beckman, proeiro do Catraio na campanha de 82, e então comandando o Olívia Palito, do CRG, deixou escapar o título na última regata para a tripulação brasiliense, comandada por Walcles Osório, atual presidente da FBVM. O terceiro lugar foi de Renato Azevedo, no Piti. O campeonato entrou para a história da classe pelo ambiente proporcionado na Ilha de Palmas, com várias tripulações pernoitando nos barcos, sedimentando o espírito de congraçamento que ainda perdura entre os membros da classe.
Uma curiosidade é que o barco usado por Walcles, o Le Perfer, fora alugado em Angra dos Reis e, na viagem de volta, um sudoeste muito forte empurrou os campeões de volta ao Rio, assustando-os com várias avarias no barco.
O Campeonato Brasileiro de 1984, ainda sem os paulistas, foi novamente disputado no ICRJ, por apenas 11 barcos, e o vencedor saiu de uma feroz disputa entre o Old Flame, comandado pelo ex-campeão José Eduardo Assumpção, o Meia Noite de Eduardo Mendes e o Set Point de Fernando Cruz. José Eduardo saiu vencedor somente na última regata, uma prova memorável, disputada com um vento sudoeste muito variável, e com várias alternâncias de posição.
Uma característica pitoresca da Classe à época, muito criticada pelos que estavam fora dela, mas que certamente contribuiu para a sua sobrevivência nos primeiros anos, era a regra das "10 regatas". Por ela, somente poderia participar do Campeonato Brasileiro um comandante que fosse proprietário do barco, ou que pudesse comprovar ter participado de pelo menos 10 regatas na Classe, nos últimos 12 meses. Essa regra evitava a entrada dos Jóqueis, tão comuns em diversas classes e que, muitas vezes, desestimulam os donos dos barcos, que são alijados da competição pelas estrelas convidadas para timonear os barcos nos campeonatos. Com a regra das 10 regatas, vários bons velejadores passaram a participar regularmente das regatas na Classe. A regra foi revogada em 1989.
Nesse meio tempo, as negociações entre os três principais núcleos da classe convergiram para a realização de um Campeonato Brasileiro em 1985, juntando novamente cariocas, paulistas e gaúchos.
Necessário destacar que, sem a cooperação efetiva de Francisco Eduardo Mendes, Tetra-Campeão brasileiro e Estadual, proprietário do Ranger 22 Meia Noite, este relato ficaria prejudicado e a história do barco incompleta.
Matéria extraída da revista Velejar e Meio Ambiente, edição n.º 5